Novembro de
1937.
“Hoje foi mais um dos dias que pretendo
apagar da minha memória, talvez o mais odiável dos dias. Nesse inferno para o
qual me trouxeram, vejo pessoas morrerem dia a dia, muitas já não vivem, apenas
existem para suportar os trabalhos que fazem para os porcos do exército. Mas
amanhã tudo pode mudar, amanhã, darei um jeito de tirar minha família deste
inferno.”
Avharon
abriu os olhos, acordou com o barulho do apito e viu que
o trem estava parando na estação. Pegou sua mala e seguiu a multidão. Não sabia
muito bem onde estava e não entendia o que as pessoas falavam, nem mesmo o que
dizia nos letreiros luminosos que pareciam estar por toda parte. Aos outros era
imperceptível, novidade para ele, quando na Alemanha, parecia que ele era um
próprio letreiro luminoso, todos o olhavam como se fosse um pedaço de comida
podre caminhando por ai. Mas ali era somente mais um homem comum. Moreno,
cabelos castanhos, levando na face o semblante triste de quem tinha passado
dois anos em um campo de concentração nazista, trabalhando para suprir as
vontades dos soldados do exército Nazista. Sorriu ao reconhecer seu tio, que
não era o tipo de homem tão imperceptível como Avharon. Elazar, seu tio, era alto,
musculoso, e carregava no corpo as marcas de um passado cruel. As mãos calejadas
pelo trabalho forçado acariciaram o rosto do sobrinho, que foi abraçado e recebeu
tapas nas costas. Enfim, estaria seguro.
Seus pais
ficaram no campo de concentração, não conseguiram fugir, e naquele momento era
improvável que ainda estivessem vivos. Mas ele não queria pensar nisso. Ainda
lhe doía no peito ter que deixar seus pais para trás para poder viver. Seu pai
sempre seria seu herói, talvez por serem tão parecidos. O que Avharon sentia no
peito era resultado do que cresceu ouvindo: a raiva que seu pai sentia por ter
de levar a vida servindo aos alemães. Aquele homem que um dia sonhara em ser
médico, que estudou para isso durante muito tempo, teve seu futuro cortado, e
isso deixou marcas imensas de uma raiva insana.
Apesar
de tudo na cidade parecer novo para Avharon, era como estar em casa. Qualquer
lugar no mundo seria melhor para ele do que aquele quarto cheio de pessoas
desnutridas com roupas em péssimas condições de uso, ou naquela cozinha em que
não recebiam comida, mas sim, trabalhavam para servir os homens do exército.
Depois de tanto tempo sendo um “bom judeu”, ele conseguiu fugir. E era naquela
cidade brilhante que ele iria reconstruir sua vida.
Avharon
dormiu por uma noite inteira, e uma longa manhã. Recebeu uma refeição simples,
mas um banquete dos deuses se comparado ao que ele comia antes. Não entendia
muito a língua dos que ali viviam, mas era um ótimo trabalhador, e talvez por
isso tenha conseguido fugir. Procurou um emprego, para ajudar seus tios, e
apesar do grande preconceito por ser judeu, conseguiu um trabalho de pedreiro.
Ele aprendia rápido, e logo conquistou a confiança do chefe. Poucas palavras
saiam de sua boca, mas muito trabalho era feito por suas mãos.
Apesar
de aprender rápido, Avharon não tinha a técnica dos demais pedreiros. Não saber
a língua deles atrapalhava na comunicação, assim, por mais que tentassem
ensinar a ele algumas das suas técnicas, Avharon não entendia muito bem. Com
seu esforço e boa vontade, aprendeu apenas observando e enquanto muitos eram
dispensados, ele continuava seu trabalho.
A
cidade luminosa se tornou padrão para Avharon, os letreiros começaram a fazer sentido,
e aos poucos ele reconhecia frases nas conversas a sua volta. As dificuldades
no seu emprego foram vencidas pelo seu esforço. Ele conquistou seu espaço pela
persistência. E um dia, talvez, conseguiria provar para o mundo e para ele
mesmo que sua raça e o lugar de onde ele veio não o definem, não o tornam
diferente. Sua vingança era ser livre. Sua vontade era ser melhor. Sua
conquista foi conseguir fugir. E talvez daqui a algumas décadas, alguém conte a
sua história em uma redação da escola.
Danúbia Peters, aluna do 1º ano do curso de Eletrotécnica na F.E.T.L.S.V.C. turma 2112.